ESPAÇO DE LUTA NA FORMAÇÃO DOCENTE
José Francisco Duran Vieira
Madalena Klein
(Curso de Especialização em Educação para Surdos/2007 – UFPel/FAe – Pelotas/RS –
Artigo publicado na VI ANPEd Sul. UFSM, 2006)
Artigo publicado na VI ANPEd Sul. UFSM, 2006)
Introdução
Este estudo abrange a caminhada do Instrutor Surdo — o Educador da Língua de Sinais. Sua formação, espaço de luta e as dificuldades encontradas no reconhecimento de sua profissionalização.
O método utilizado foi o dialético, com enfoque qualitativo, através de uma pesquisa descritiva e de entrevistas semi-estruturadas. Foram utilizados relatos de experiências dos Instrutores Surdos por intermédio da Língua de Sinais, filmados e transcritos para a Língua Portuguesa por Intérprete.
A pesquisa está centrada no grupo de surdos da cidade de Pelotas/RS. Procuramos articular leituras sobre a Educação dos Surdos em livros, artigos, documentos provenientes de seminários e da história do povo surdo. É importante salientar a necessidade de conhecer o que pensam e contam os surdos participantes dessa história de lutas e por isso a pesquisa foi realizada junto aos sete instrutores surdos atuantes nessa cidade. As “falas” desses surdos servem de referencial de análise sobre o significado de “ser instrutor”, dentro de um movimento construído pela comunidade surda.
A (re)significação da caminhada
Podemos observar nas últimas décadas, o crescimento da participação da comunidade surda nos diferentes segmentos sociais, exigindo novos posicionamentos e novas práticas que estão transformando posturas e provocando mudanças nos paradigmas sócio-culturais.
Os surdos vêm construindo uma identidade surda diferente da estigmatizada, que lhes tem sido imposta há séculos. Termos como “deficiente auditivo” tem sido usado para designar um sujeito surdo entendido como doente, com déficit biológico, que deve ser curado, normalizado, treinado a ouvir e falar para se igualar à sociedade majoritária ouvinte. Rompendo essa lógica, Perlin (1998, p.71) afirma que “para o movimento surdo, contam as instâncias que afirmam a busca do direito do indivíduo surdo ser diferente nas questões sociais, políticas e econômicas que envolvem o mundo do trabalho, da saúde, da educação, do bem-estar social”.
Nessa trajetória, o surdo vem reivindicando o direito de ser cidadão, que se comunica utilizando um outro meio e, conseqüentemente, uma outra língua e cultura. No Brasil, diante de uma caminhada mais recente e por vezes lenta, a comunidade surda conseguiu o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS em vários estados e municípios brasileiros, e mais recentemente, através de Lei assinada pelo Presidente da República (BRASIL, 2002) foi considerada língua oficial nacional, mostrando que essa comunidade tem capacidade, competência e eficiência nas mais variadas áreas de atuação.
Os surdos cada vez mais estão se inserindo na Educação, pesquisando e participando de atividades acadêmicas, garantindo o debate, estudos e conhecimentos profundos na estrutura da Língua de Sinais, repensando e propondo projetos que propiciem o desenvolvimento da comunidade surda e conseqüentemente a atuação profissional no mercado de trabalho.
O Instrutor de Sinais é um exemplo disso. Questiona-se muito qual o profissional que pode ensinar LIBRAS. Exclusivamente surdos ou ouvintes também têm esse direito? A FENEIS — Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos — vem tentando, através de manifestações e reivindicações junto a órgãos competentes, defender o reconhecimento desse profissional. O Instrutor de LIBRAS ainda não é oficialmente reconhecido como um profissional, um educador da Língua de Sinais. Lamentavelmente ainda não existem cursos em nível médio ou universitário que capacitem pessoas para essa profissão.
Conforme descrito na Revista da FENEIS (FENEIS, 1999a, p. 14),
as pessoas surdas que adquiriram a LIBRAS como sua primeira Língua (L1), ou que possuem proficiência enquanto usuários dessa língua, por fazerem parte de uma Comunidade Surda, estão “naturalmente” habilitadas para ensinar essa língua em termos de conhecimento sintático-semântico-pragmático intuitivo que possuem, somando-se a esse quesito natural a capacitação por meio de cursos específicos para o exercício da tarefa de Instrutor de LIBRAS.
O Grupo de Pesquisa dessa entidade tem se engajado na organização de cursos voltados a formação profissional de surdos para que estes possam atuar como Instrutores de LIBRAS. No programa desses cursos são incluídos conteúdos lingüísticos e metodológicos específicos e estimuladas discussões sobre as experiências de surdos que já atuam nessa atividade de ensino, procurando, assim, a qualidade no trabalho desses educadores. Mesmo com toda essa organização, é importante a necessidade de uma reflexão sobre as bases curriculares desses cursos. Também é decisivo que essas narrativas atinjam patamares universitários, proporcionando a formação em nível acadêmico, fomentando conhecimentos mais aprofundados e sustentabilidade teórica no processo ensino-aprendizagem e, conseqüentemente, uma legalização do profissional Instrutor/Professor.
O reconhecimento científico da Língua de Sinais compeliu escolas, instituições e universidades nas quais os surdos estejam envolvidos como alunos, e cada vez mais se tornam presentes também como professores, a questionarem-se sobre o ensino que é oferecido, propondo mudança de postura frente à surdez. É importante salientar que um número significativo de surdos vem procurando cursos de licenciatura no ensino superior e que esses cursos, somados à formação de Instrutor de LIBRAS oferecida pela FENEIS, em diferentes cidades do país, vêm dando maior credibilidade e sustentação às suas práticas de ensino da língua.
Podemos afirmar que, aos poucos o espaço do profissional surdo está sendo construído. O esforço incorporado para a divulgação e respeito da LIBRAS, somado com a preocupação na formação de recursos humanos qualificados, da (re)significação da Identidade e Cultura do cidadão surdo, tem incentivado alguns estados e municípios a realizarem concurso público para Instrutor de LIBRAS. Para a comunidade, educadores, escolas e universidades onde os surdos estão inseridos, reafirma–se sua condição de cidadãos ativos e participantes nesta sociedade, da qual todos fazem parte. No entanto, não podemos deixar de evidenciar que a luta é política e significativa na linha do tempo da história do povo surdo.
Em 1996 a FENEIS, em conjunto com a Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos de Surdos – FENAPAS, com o apoio da Coordenadoria Nacional para Integração de Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE e da Universidade Católica de Petrópolis/RJ – UCP, propôs nessa mesma cidade a realização de debates com a participação de vários órgãos públicos para a elaboração de um documento que alicerçasse a legalização da LIBRAS no Brasil e o perfil do profissional Intérprete. Esse documento também faz referência ao Instrutor de Sinais, atribuindo-lhe algumas características em relação a sua atuação, função e formação, salientando a característica bilíngüe desse profissional, a necessidade de capacitação permanente, tendo já cursado “preferencialmente o Ensino Médio completo e curso de formação de Instrutores de Língua de Sinais promovido por órgãos competentes.” (CORDE, 1996)
No período de 21 a 24 de abril de 1999, organizado pelo NUPPES – Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos, ligado ao programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS e pela FENEIS, foi realizado, no Salão de Atos da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em Porto Alegre/RS, o V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngüe para Surdos. A comunidade surda, naquela ocasião elaborou o documento “A Educação que nós Surdos queremos”, para ser apresentado nesse Congresso e que, posteriormente, ajudaria na oficialização da LIBRAS, sob Lei nº 11.405 de 31/12/1999, no âmbito do Rio Grande do Sul, bem como referenciaria as prerrogativas para a educação dos Surdos na Política Nacional de Educação Especial. O documento mencionado, além de reafirmar alguns posicionamentos citados anteriormente, salienta que se deve “encaminhar o Instrutor Surdo com conhecimento no campo da educação de surdos para trabalhar em escolas. Os Instrutores surdos sem formação no magistério devem atuar em outras áreas, como por exemplo: família, empresas, etc.” (FENEIS 1999b, p 13)
O movimento do Instrutor Surdo em Pelotas
O movimento do Instrutor Surdo em Pelotas difundiu-se logo após a participação de um grupo de surdos e ouvintes no V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngüe para Surdos, em Porto Alegre e no I Congresso Brasileiro de Educação de Surdos, promovido pelo Instituto de Tecnologia Avançada em Educação – ITAE, no período de 28 a 30 de junho de 1999, em São Paulo/SP.
Os dois primeiros Instrutores Surdos de Pelotas relatam em entrevista realizada que, anteriormente a esses dois Congressos, os surdos, nesta cidade, limitavam-se a encontros esporádicos para a conversação, utilizando-se de uma Língua pouco estruturada. Esses dois congressos despertaram na comunidade surda não apenas a possibilidade de um domínio e de um conhecimento maior da Língua, mas também significativas transformações na história do povo surdo desta cidade. Pelotas emergia para novas propostas e novos olhares na educação de surdos.
Conseqüentemente, os surdos começaram a assumir papéis e posturas importantes necessárias para uma nova estruturação nos níveis social e político. Decorrente disso, em 25 de julho de 1999 foi inaugurada a Associação de Surdos de Pelotas – ASP.
Na narrativa dos primeiros Instrutores Surdos percebe-se, na exaustiva euforia dos Sinais e nas expressões gestuais, a perplexidade e a emoção quando se depararam frente a novos horizontes. No ano de 2000, dois surdos que haviam participado dos referidos Congressos foram convidados pela FENEIS de Porto Alegre/RS a participarem de curso de Instrutor de Sinais, através do Qualificar/RS, promovido pela Secretaria Estadual do Trabalho e Ação Social.
O curso tinha duração de 200h. Segundo relato, estava pautado nos seguintes conteúdos: teoria (cultura e identidade surda), práticas em LIBRAS, metodologias, pesquisas e discussões em grupo, brincadeiras, classificadores (estrutura gramatical da LIBRAS), ética, contar histórias, legislação entre outros. Nessa época, o curso destinava-se apenas a habilitar surdos para ensinar LIBRAS a ouvintes. É interessante salientar que esses dois surdos eram acompanhados por professores ouvintes que se revezavam para levá-los a Porto Alegre. Eles não viajavam sozinhos. Uma das professoras que chegou a levar esses surdos salienta em sua fala que, sem querer, o que estava por trás disso era um sentimento de “proteção” de “assistencialismo”. Apesar de reconhecer pelas inúmeras participações em encontros e congressos que anunciavam mudanças nos paradigmas na educação de surdos e que eles deveriam se “libertar”, tais atitudes eram inerentes ao grupo de educadores que os acompanhavam, associadas ao sentimento de “medo” e “incompetência” dos dois surdos decorrente de suas próprias histórias de vida.
Posteriormente a esse curso, Pelotas transcendeu na caminhada na educação de surdos. Os dois Instrutores (Agentes Multiplicadores) realizaram inúmeros cursos de LIBRAS para ouvintes (Básico, Intermediário e de Intérprete), contribuindo fundamentalmente para a divulgação da Língua, Cultura e Identidade da Comunidade Surda de Pelotas.
Logo após, um outro grupo realizou o Curso de Instrutor na cidade de Santa Maria (teoria/120h) e em Porto Alegre (prática/50h), totalizando 170h. Os conteúdos abordados foram: Cultura e Identidade Surda, SignWriting (Escrita de Sinais), Prática em LIBRAS, Comparação Português/LIBRAS, Classificador, Metodologia e Didática. Esse curso se diferencia do anterior por habilitar a ensinar LIBRAS a surdos e ouvintes (tanto adultos como crianças). Hoje existem sete instrutores habilitados em Pelotas.
Relatos significativos
Considero interessante destacar, no seguimento desta pesquisa, algumas das falas dos instrutores entrevistados no intuito de relatarem suas experiências e narrarem as trajetórias vivenciadas como instrutores de sinais.
Do grupo dos sete Instrutores Surdos, cinco estão exercendo a profissão. Todos concordam que o profissional deve ter formação universitária, sendo que somente dois deles possuem tal formação; os outros três ainda estão cursando a universidade. Além disso, enfatizam, devem ter o mesmo “nível” de conhecimento que os ouvintes; assim poderão, mais facilmente, trocar idéias, palavras e sinais, mutuamente. Se o Instrutor não possuir essa formação ele poderá ficar “angustiado”. Ademais, ressaltam que o Instrutor não “deverá desenvolver um trabalho cínico (descomprometido), ele precisa ser sério, profissional”, alertam os Instrutores entrevistados.
Apesar de não terem a profissão ainda reconhecida pelo Ministério do Trabalho, eles se consideram privilegiados por estarem em um Estado que possui uma ampla discussão na educação de surdos, pelo reconhecimento da trajetória de lutas e principalmente pela oficialização da Língua de Sinais.
Os Instrutores frisam a importância de estarem permanentemente lutando até as últimas instâncias, tanto na política quanto nos meios sociais, em busca de seus direitos. Também reforçam que de forma nenhuma o grupo deve ficar inerte frente ao grande trabalho que deve ser desenvolvido em Pelotas e que devem estar ininterruptamente em constante atualização, procurando e desenvolvendo novos materiais pedagógicos e se inserindo cada vez mais nas novas tecnologias. Ficam, inclusive, preocupados e reafirmam que “o instrutor não deve ter uma mente fechada, o instrutor tem que buscar conhecimentos para ajudar outros surdos a crescerem e se desenvolverem, sempre procurar pesquisar e aprofundar LIBRAS e nunca parar”.
Considerações finais
A caminhada da Comunidade Surda e do Instrutor Surdo nos faz pensar que as diferenças devem extrapolar as fronteiras de nossas próprias subjetividades e, conseqüentemente, nos possibilitar como indivíduos a uma reconstrução de um mundo mais social. O surdo defende uma posição digna na sociedade e que o respeito às diferenças passe dos planos da intolerância para uma dimensão cultural.
Nas conquistas encadeadas pelos surdos chagas foram abertas, espaços e poderes disputados, culturas negadas e muitas vezes silenciadas (SANTOMÉ, 1995). Hoje, portanto, percebemos, através dos movimentos multiculturais, que para a comunidade surda está se delineando uma trajetória mais organizada, revelada na composição e estruturação de associações, na busca de espaços escolares e acadêmicos, construindo uma relação mais estrutural e prática de poderes nessa transposição de convivência entre surdos e ouvintes.
As políticas educacionais devem ser meios para resgatar projetos que estimulem discussões construtivas para uma prática social que possibilite oportunidades para todos. Devem propiciar trocas de experiências que enriqueçam e permitam às Comunidades Surdas propagarem sua cultura e engajarem cada vez mais surdos nessa luta, em um exercício mais sociável e humano. Leis que amparem o Instrutor Surdo, sua Língua e principalmente sua Comunidade, são necessárias para retomarmos nossos conceitos em relação ao outro e suas diferenças.
Por conseguinte, percebemos, através desta pesquisa, que a história do povo surdo vem sendo construída através do engajamento dos surdos, de suas entidades representativas, articuladas com diferentes instituições de ensino e pesquisa. Essa luta vem reivindicando o posicionamento de governos municipais, estaduais e federais, no sentido de criação e ampliação de políticas públicas que garantam o exercício da cidadania desses sujeitos. Avanços ocorreram, mas podemos perceber que ainda há muito a se trilhar. Muitos são os desafios aos educadores envolvidos na Educação de surdos — surdos e ouvintes; as trajetórias estão sendo traçadas em espaços de luta e diferenças. Estas são questões imprescindíveis na formação ética, moral e social do ser humano.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e dá outras providências. Brasília, 2002.
CORDE – Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Língua de Sinais e Caracterização da Profissão de Intérprete. Câmara Técnica da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE/Secretaria dos Direitos da Cidadania/Ministério da Justiça/Federação Nacional para a Educação e Integração dos Surdos – FENEIS/Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Surdos – FENAPAS. Petrópolis, 1996. Texto Digitado.
FENEIS. Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. As Comunidades Surdas Reivindicam por Novas Profissões: INSTRUTOR DE LIBRAS E INTÉPRETE DE LIBRAS. Revista da FENEIS, Rio de Janeiro/RJ, Ano I, número 4, páginas 14-15, outubro/novembro, 1999a.
______. Que Educação nós surdos queremos. Documento do Pré-Congresso – V Congresso Latino Americano de Educação Bilíngüe para Surdos. Porto Alegre/UFRGS: 1999b. Texto Digitado.
PERLIN, Gladis T.T. Identidades Surdas. In:SKLIAR, Carlos. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. p. 51-73.
SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas na sala de aula. Uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 159 – 177.