QUE CORPO REALMENTE HABITAMOS

JFDuran.

Nasci com meu corpo em alta transformação, ele mesmo já estava se modificando logo após ser fecundado. Mas meu destino não era a “normalidade” morfológica. Depois de ter passado meio século, percebo o quanto aprendemos com essa matéria terrestre que constantemente está se metamorfoseando.

De repente, inúmeros questionamentos perdidos entre minhas reflexões me fizeram delirar por alguns instantes: De onde viemos? Para onde vamos? Quem verdadeiramente somos? Para que estamos aqui? O que pretendemos fazer? Qual a nossa contribuição como sujeito social, político e humano? Que corpo é esse que habito? Como o reconheço?

Não fui, brevemente, conhecer o aconchego do berço e o quarto enfeitado pela minha mãe após meu nascimento. Nasci patologicamente clinicado com fissura labiopalatal e que me deixou dias no Sanatório localizando entre “las calles San Martín y Martín Garcia” em Montevidéu/Uruguai. Sanatório no Uruguai não é lugar de loucos, viu! Sanatórios são instituições com a mesma finalidade dos hospitais aqui no Brasil. Esse Sanatório era especializado em maternidade. Passei 15 dias e outros tantos dias, indo e vindo ao Sanatório, fazendo e refazendo cirurgia para tentar ficar “normal”. Já nasci ativamente transmutado!!

“No entanto, diversidade não é doença. O anormal não é o patológico. Patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. Mas o patológico é realmente o anormal” (Canguilhem, pg. 96)

Quando criança meus braços seguidamente saiam do lugar. Aos 17 anos perfurei o tímpano e perdi a audição do ouvido esquerdo. Por enquanto não uso aparelho auditivo. Depois que me envolvi com a comunidade surda tenho resistência a usá-lo. Apesar de ter a consciência que no futuro terei que encarar. Isso me faz lembrar o seriado Cyborg – O Homem de 6 Milhões de Dólares, com o ator Lee Majors atuando como homem biônico. No Brasil foi exibido entre 1977 a 1991 pela TV Bandeirantes e TV Globo. Um homem ciberneticamente transformado.

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“É certo que, em medicina, o estado normal do corpo humano é o estado que se deseja restabelecer. Mas será que se deve considerá-lo normal porque é visado como fim a ser atingido pela terapêutica, ou, pelo contrário, será que a terapêutica o visa justamente porque ele é considerado como normal pelo interessado, isto é, pelo doente? (…) No pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas. E é nesse sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica. (…) Não emprestamos às normas vitais um conteúdo humano, mas gostaríamos de saber como é que a normatividade essencial à consciência humana se explicaria se, de certo modo, já não estivesse, em germe, na vida. (…)  Existe patologia biológica, mas não existe patologia física, nem química, nem mecânica. “Há duas coisas nos fenômenos da vida: primeiro, o estado de saúde; segundo, o estado de doença; daí duas ciências distintas: a fisiologia, que trata dos fenômenos do primeiro estado, e a patologia, que tem como objeto os fenômenos do segundo. (…) A fisiologia está para o movimento dos corpos vivos assim como a astronomia, a dinâmica, a hidráulica etc. estão para os movimentos dos copros inertes; ora, estas últimas ciências não têm nenhuma ciência que lhes corresponda como a patologia correspondente à primeira. Pela mesma razão, nas ciências físicas repugna qualquer ideia de medicamento. Um medicamento tem como finalidade trazer as propriedades de volta a seu tipo normal; ora, as propriedades físicas, como não perdem nunca esse tipo, não precisam voltar a ele. Nada, nas ciências físicas, corresponde ao que é a terapêutica nas ciências fisiológicas”.” (Canguilhem, pg. 86)

Há pouco tempo atrás, depois de um cirurgia de catarata, um dos olhos inflamou e isso vai me deixar com alguma sequela. Relato isso para as pessoas perceberem como nossos corpos constantemente estão se transmudando. Meus alunos surdos e professores especialistas na educação de surdos, sempre me falaram que a surdez para uma pessoa consciente da sua situação, não considera esse estado como uma perda ou uma falta. Percebo, muitas vezes, professores narrarem a preocupação de trabalhar com seus alunos os direitos que as pessoas com alguma deficiência têm de ter uma vida digna como qualquer outro cidadão. Mas esquecem (até mesmo por falta de aprofundar-se mais no assunto), que deveriam trabalhar a percepção nos seus próprios corpos, e também dos próprios alunos, que insistentemente, fora do nosso controle, transmutam constantemente negando a normatização. Fico receoso quando os conceitos de clinico e patológico se sobrepõe a diversidade que esses corpos incessantemente se expõem diante da sociedade. Somos seres humanos minados de preconceitos herdados de valores familiares, religiosos e de concepções, muitas vezes, “combinadas” socialmente.      

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 Tom Leppard: O homem leopardo

“O normal não é um conceito estático ou pacífico, e sim um conceito dinâmico e polêmico.(…) Quando se sabe que norma é a palavra latina que quer dizer esquadro e que normalis significa perpendicular, sabe-se praticamente tudo o que é preciso saber sobre o terreno de origem do sentido dos termos norma e normal, trazido para uma grande variedade de outros campos. Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé, endireitar. “Normar”, normalizar é impor uma exigência a uma existência, a um dado, cuja variedade e disparidade se apresentam, em relação à exigência, como um indeterminado hostil, mais ainda que estranho.” (Canguilhem, pg. 201) 

A sociedade não está preparada para essas transformações. A precariedade estrutural e a pouquíssima mobilidade urbana das cidades, excluem vergonhosamente às diferenças. Os corpos transformados (obesos, cadeirantes, etc.) tornam-se corpos pesados, impróprios, indesejosos e inúteis. Desta forma, a visão assistencialista se afirma e, consequentemente, a visão caridosa se impõe mais à visão das diferenças, na qual deveria ser uma marca peculiar a condição do corpo humano.

É assim que me constituo, é assim que quero habitar esse corpo. É assim que me apresento, que me identifico. É assim que me materializo e me expresso. As implicações dessa identidade materializada chocam a sociedade. Dessa forma ela tenta, por dentro da normatização,  descrever o sujeito como anormal ou detentor de alguma anomalia. Mas, por outro lado, as mudanças desses corpos no mundo da estética e da vaidade não representam ameaças a essa sociedade hipócrita. Em nome da beleza estereotipada através de uma norma implementada pela mídia as pessoas acabam se mutilando e muitas vezes pagando caro por isso. Mas esses corpos não identificam mais esses sujeitos. Eles representam aquilo que querem ver. São corpos que pertencem ao desejo dos outros. É diferente quando possuímos um corpo constituído pelas marcas de nossas próprias vivências e alimentado pelo âmago de nossos desejos. Num passado não muito distante, as cirurgias plásticas se preocupavam em “restaurar”, reconstituir zarpas do corpo deixadas por um acidente ou até mesmo, como no meu caso, pela má formação congênita. Hoje, as cirurgias plásticas transformam sujeitos, modificam corpos a ponto que os próprios filhos já não mais nascem com “traços” físicos iguais a dos pais. Atualmente, com o grande avanço das tecnologias, o corpo reprojeta-se não mais como foco de desejo, mas um objeto de projeto a ser atingido.

A visibilidade para marcar espaço na sociedade desses corpos e desejos reais é imprescindível. Delatar normas que fujam da condição de corpos socialmente educados são necessários, e essa discussão deve ser pautada dentro de uma ética que não individualize opiniões e crenças, mas que prestigie um debate descontextualizado de valores morais e principalmente religiosos. E a escola é um desses lugares.

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Loren Cameron Rex é um fotógrafo norte-americano e ativista LGBT.Ele já transformou totalmente seu corpo, mas ainda não fez a cirurgia de mudança de sexo.

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Fotógrafo Michael Stokes  – Registra imagens de corpos transformados
de ex-fuzileiros navais atingido na guerra no Afeganistão.

A escola geralmente emudece esses corpos e a própria discussão em todos os sentidos. Muitas escolas vem se adaptando para receber crianças com algumas deficiências. Mas a adaptação é sutil e precária. Principalmente é uma adaptação física. Nas escolas que trabalho, por exemplo, os surdos sempre tem problemas de falta de intérprete, que aliás são muito mal pagos, tanto na rede municipal quanto na rede estadual. Na educação de surdos tudo é feito com muito sacrifício e especialmente com muita luta da comunidade surda, professores e das famílias envolvidas. Com certeza, essa luta constante pela qualidade de vida para que esses corpos ocupem todos os espaços sociais, políticos etc., demanda sempre muito esforço, muitas vezes, de fontes inexplicáveis. 

Outro ponto polêmico é a diversidade sexual no âmbito escolar. Na qual encontramos muitos corpos cheios de vontades de se expressarem. Não estou falando apenas dos corpos dos alunos, os professores demostram em suas falas, em suas fisionomias e com certeza em seus corpos marcas gritantes de uma sexualidade reprimida.  Também, muitos desejosos de expressão. Se não conseguimos resolver nossa própria sexualidade, como vamos resolver a sexualidade do outro?

Lembro quando criança como meu corpo era educado. Apesar que, mesmo no meio da repressão corporal, eu acabava sempre denunciando meus trejeitos que, para aquela época, não eram muito aceitáveis nos convívios familiares, escolares e entre meus amigos. Quando contei aos 40 anos de idade da minha condição sexual para minha mãe, ela sem expressar surpresa me disse: – Eu já sabia! Ela sabia desde minha infância, desde que me gerou, desde os dias que ficou me cuidando nas intermináveis cirurgias no palato-labial.

Hoje, os corpos explodem na infância. E a infância explode os corpos. E isso incomoda. Incomoda a família, incomoda a sociedade e incomoda a escola. Não podemos continuar ignorando isso. Não podemos ficar ignorando esses corpos. Projetos, seminários e discussões em sala de aula e em reuniões pedagógicas juntamente com a comunidade escolar, devem alicerçar o debate e pautar metas que façam realmente a diferença e revertam em ações significativas, na qual as pessoas percebam esses corpos que habitam.

O vídeo abaixo é um exemplo disso. Assista e reflita como você  agiria se essa criança chegasse em sua escola. O que você faria como professor(a) dele? Quais as ações efetivas que você proporia para uma grande mudança na percepção dos corpos na escola?

 

SUGESTÕES DE OUTROS VÍDEOS

Milagres do PHOTOSHOP

Corpos Transformados

Menino Mais Forte do Mundo

 

Propaganda Dove!

A frase final do vídeo que está em inglês, traduzida ficaria mais ou menos assim:

Não admira que a nossa percepção da beleza é distorcida.

Participar nas oficinas é verdadeira beleza Dove para meninas.

REFERÊNCIAS

Canguilhem, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.